data-filename="retriever" style="width: 100%;">Já caminhei árduas e poeirentas estradas. Já pisei pedra e lama. Já furei as nuvens brancas em voos calmos de céus-de-brigadeiro e já me senti ripa de pandorga desgovernada, num teco-teco no meio da tempestade. Já andei um bocado de Brasil. Melhor, já andei vários brasis. Do extremo Sul ao extremo Norte, de Leste a Oeste. E estive no Centro, onde os brasis se encontram e onde me descobri brasileiro. O resto do mundo, conheço das viagens da alma inquieta. Nessas andanças, encantei-me com belos entardeceres; me embrenhei na mata virgem; vi o rastro fresco da onça pintada na areia umedecida pelas chuvas de verão; dormi em rede e em jirau; naveguei, entre vitórias-régias florescidas, as mais doces águas desta pátria-mãe-gentil. E de nada me arrependo, senão de ter amado pouco (e amei bastante e muito fui amado). E de tudo tenho boa saudade: das águas cristalinas do Rio Branco às águas avermelhadas do Ijuí-Mirim.
Fui aluno e professor. E de aprendiz me fiz mestre, no pavimento mosaico das oficinas da liberdade, onde se encontram homens livres e de bons costumes. Fui irmão de pobres e ricos, testemunhei riso e choro, sonho e desesperança. Apartei-me das velhas utopias, para refazer-me novo, no sonho da transformação. Estive nos dois lados do balcão: atendi e fui atendido. Daí ter aprendido o gosto da suavidade, o gesto de compreensão, a palavra amena que sustenta as miçangas da gentileza. Mais fui agredido, penso, do que agredi; mais fui perdoado, sei, do que perdoei. Assim, amansei meu espírito.
Ganhei. Perdi. Fraquejei. Recomecei muitas vezes. Da vida, carrego a sensação de que mais importante que chegar é andar, é fazer estrada. Por falta de tempo e de vocação, não acumulei dinheiro. E, se eu morrer amanhã, deixo de herança aos meus filhos apenas um punhado de textos nas gavetas, livros que juntei pelo caminho, discos, quadros de artistas desconhecidos, folhagens, com quais converso nas madrugadas de insônia, um bar com bebidas de boa qualidade, uma coleção de latas de cervejas, objetos antigos e uma casa de portas abertas. No mais, fica uma singela lição de humildade: reconheço-me parceiro da imperfeição.
Fernando Pessoa, usando antiga frase do general romano Pompeu, afirmou que "Navegar é preciso; viver não é preciso". Pois, pretensiosamente, digo: andar é preciso, chegar não é preciso. Importa é fazer estrada e fazer-se estrada; é construir pontes e construir-se ponte; ser veleiro sem preocupação de encontrar porto seguro. É preciso viver na dimensão da poesia, onde estão as asas que nos fazem voar na intangibilidade do infinito. Para Pessoa, viver não é necessário; necessário é criar. A poesia pode ser a simbólica representação da vida e da criação. Como o Natal, que me faz refletir sobre minha própria vida, para desejar a cada um dos amados leitores e a toda brava e lutadora gente brasileira um tempo novo, de progresso, de fraternidade, de paz e de muita luz.
(Observação: este texto não é inédito e foi escrito há quase 10 anos. Apesar disso, resolvi republicá-lo porque a reflexão que nele faço deve ser, parece-me, permanente).